Calçar os sapatos de Eva Meyer, uma jovem vendedora de um grande armazém, cujo salário sustenta a família inteira, é a proposta da realizadora Lois Weber. Calçar os sapatos de Eva, portanto, entrar na pele do eterno feminino, que vai muito além da sensibilidade e fragilidade do “segundo sexo”, como lhe chamava Simone de Beauvoir, é dar a ver o mundo de Eva Meyer na “primeira pessoa”. Que história nos é contada? A de uma rapariga pobre, cujo pai, lascivo e preguiçoso, passa os dias deitado a ler romances de cordel, a beber cerveja e exalar o fumo do seu cachimbo num quarto cuja porta está sempre aberta. A de uma rapariga que tem três irmãs mais novas e uma mãe que faz das tripas coração para impedir a desagregação total do lar, nem que para isso tenha de proibir os 3 dólares que a sua filha, único sustento da casa, precisa para comprar um mísero par de sapatos. São estes sapatos que calçamos quando o filme começa. São sapatos velhos que contrastam com o corpo jovem de Eva. Sapatos-condenação-anunciada num cartão, no começo do filme, que nos diz que Eva “se vendeu por um par de sapatos”. Sapatos-pobreza, como símbolo, e ao mesmo tempo sapatos-literais, materiais, sapatos cujas sola gastas deixam farpas espetadas nos pés da jovem. Sapatos cuja cartolina com que Eva vai recauchutando as solas se desfaz nas manhãs de chuva. Sapatos-vergonha de uma classe operária que se olha ao espelho, assaltada pela insónia e pelos traços surrealistas de uma mão monstruosa que confirma a condenação: o jovem corpo de Eva será também ele usado. No plano formal, a grandeza dos planos e um apurado sentido de composição, patente desde a abertura do filme, encontram pormenores de um quase-surrealismo que se cruza com um sobre-realismo. Dois momentos: o plano ao nível do chão, a chuva cai forte e os sapatos de Eva avançam de proa feita com o casco abalroado, como um navio prestes a fundar; Eva na cama, a brancura dos olhos contrasta com a noite do proletariado, e uma mão gigante e vampiresca vem sufocá-la; na pele dessa mão, tatuada, a palavra “pobreza”. Mas o formalismo é todo ele político em “Shoes”, e o que hoje se diz serem “questões de género” ou “temas sociais fraturantes” estão bem patentes na brancura dos olhos de Eva: a prostituição como única a saída, sem margem para qualquer “coming-of-age”. Lois Weber é um marco não por ser uma mulher que filma mulheres com um olhar sobre a mulher e sobre questões que afetam diretamente as mulheres do seu tempo: é uma grande cineasta. E Shoes é um filme raro, raramente exibido em Portugal e que aqui surge num encontro único e singular com a música de uma outra mulher, a harpista espanhola Angélica Salvi. (LL)