Ouvir a voz interior

A ambiguidade das relações afetivas, nomeadamente familiares, é uma das questões recorrente no seu cinema, geralmente abordada com sarcasmo e com um olhar corrosivo e desinibido: "O Almoço de Domingo" (2015) recria precisamente um traumático almoço familiar de domingo com um tom provocador e vingativo; "Grande Tristeza" (2017) acompanha um quarto de hora na vida de um casal em desintegração, evidenciando momentos particularmente cruéis e grosseiros entre ambos que resultam de uma verdadeira ressaca emocional; "Toda a gente gosta de Jeanne" (2022) é sua primeira longa, acabada de estrear na Semana da Crítica em Cannes, que centra a atenção na história de uma mulher francesa, afundada em dívidas, que viaja para Portugal para vender a casa da mãe que faleceu há cerca de um ano. Estes filmes abordam questões sensíveis – como os traumas familiares, o fim dos relacionamentos amorosos, a morte ou a depressão – de forma descontraída, procurando sublinhar os aspetos contraditórios do quotidiano, entre o trágico e o cómico, que fazem sofrer, mas também ajudam a crescer emocionalmente.

A sua formação académica em literatura e história também é visível na sua criação artística. Céline Devaux gosta particularmente de desenvolver personagens aparentemente paradoxais, que pensam e agem de forma diferente, desde o célebre e enigmático Rasputine, monge mítico da corte dos czares russos, à mais recente Jeanne, uma mulher comum da atualidade. A voz interior é um mecanismo que a realizadora usa para aproximar o espectador dessas personagens e entrar na mente delas, de forma a criar uma relação empática e de cumplicidade. O uso da animação, sobretudo misturada com a imagem real, vinca de forma mais expressiva essa dualidade, mas serve também para a realizadora conciliar, de forma muito dinâmica, essas partes aparentemente irreconciliáveis das suas personagens.